quarta-feira, 2 de maio de 2007

'Viver é ter contrastes'



Certas noites

Certas noites eu navego
vou ao léu
ao encontro do céu
certas noites eu me entrego

Certas noites eu naufrago
bebo o breu
que pinta o céu
certas noites eu me afogo

Mas volto à tona,
volto à flor d'água
sou marinheira
de mil viagens
solto meu canto
volto sereia
deslumbro
encanto
fascino
seduzo
atraio
cativo
enredo
engano
desfaço
maltrato
tiro o compasso...



O chat caiu

Tua ligação cai em meio a um chat e eu fico desamparada, me sentindo abandonada, sozinha, descompensada. Amaldiçôo a Telerj, os pulse, os tones, fax, modems, Embratel e Graham Bell. Saio da conexão, te ligo. Ocupado!!! Ocupado!!! E sinto no meu peito um aperto, um mal parado... Vou à cozinha, abro um vinho e decido me embriagar! O que sobrou na garrafa, nem para um copo me dá. Penso, inteiramente desesperada: "Só tenho duas saídas: suicídio imediato ou nova conexão!!!" Como sempre fui dramática, tento a segunda opção! Volto pra minha telinha, que aos meus olhos nublados, tristonhos e desvairados tem forma de coração. A tela é um imenso Norton Desktop Coração!!! Pela enésima vez, batalho a conexão! Parece que consegui! Digito a senha, musiquinha multimídia! Ai meu Deus, mas que demora pro programa carregar!!! Um mero 486Dx4-100, com 16 mega ram é a coisa mais obsoleta de toda a Criação! Até mesmo um Pentium-Pro seria uma lesma lerda diante de tanta aflição! Enfim o programa carrega e, desesperadamente, o mouse trêmulo, procura os usuários on-line. Aflita e consternada, constato que você, nada, nem de leve passou por lá... Quase que desfalecendo, tomo a irreversível decisão de ir pra Pago-Pago, numa balsa de madeira, abrindo mão pra todo o sempre de toda e qualquer ligação com informática, luz elétrica, telefonia. Adeus tecnologia!!! Namorar? Somente aborígines! Que não sabem o que são nick-names ou IDs. Se comunicam usando somente atabaques, maracas, tambores, tantãs e as batidas de seus corações.

Eliane Stoducto - 1997


Foto Charles Ebbets.


Reformas

Fui arrancada do bem-bom do sono pelo blim-blom da campainha! Com os olhos enevoados olho o relógio: 6:45 hs da manhã. Envolta em brumas repletas de carneirinhos, faço um esforço super-humano, visto o roupão e vou ver quem é. Do outro lado da porta avisto o pedreiro e o pintor. Meus pêlos se eriçam de pavor! Me lembro da reforma que estou fazendo e meu humor vai parar na ponta do dedão do pé. Ai meu Deus, por que essa classe subalterna tem a mania de madrugar? Por que insistem em chamar as mulheres de madame? Por que olham com um olharzinho de deboche e desprezo para quem levanta após o meio-dia? Inveja! Só pode ser inveja! E luta de classes também! Afinal de contas eu passo as noites e madrugadas escrevendo, lendo, trabalhando, oras! E, durante o dia, ataco de administradora, contadora, arrumadeira, lavadeira, faxineira, compradora, 'boy', economista, socióloga, pedagoga etc., sem remuneração. Tenho dois filhos e não tenho empregada, oras! Nada dessa "mamata" de chegar em casa e ter quem faça comidinhas para mim! Marmitas prontas? Ahhhh, sonho dos deuses! Meus dias são cansativos e canhestros e eles ainda se atrevem a me pensar "madama"! Arrrrrrrrrrghhhhhhh! Armo um sorriso entre o contrafeito, simpático e culpado e dou bom dia aos "penetras". Certo, certo! Penetras a meu soldo, concordo, mas nem por isso menos penetras! Eles olham para mim e entreolham-se com sorrisinhos disfarçados, como se dizendo: "a orgia noturna deve ter sido boa..." — e eu, pobre de mim, que há dois meses ando em jejum sexual absoluto, pensando até em procurar uma abadia onde me sagrem monja, me aceitem e aos meus dois rebentos, sinto-me como uma loba da estepe, meus dentes internos arreganham-se, quase babo e penso: "é hoje!" O pintor começa a preparar-se: é alérgico, o cidadão. Consome baldes de leite entre uma pincelada e outra e sofre... Seu olhar, por detrás da máscara protetora é de Cocker Spaniel. Tenta me comover. Mas eu sou dura, José! Logo imagino que ele vai tentar reestruturar o orçamento feito previamente, em função de sua alergia e acerto!... Putz! O pedreiro é mais simpático e acessível mas, depois que percebo que a cada dia começa a chegar mais perfumado e até está usando a dentadura, desconfio! Toda cautela é pouca para uma mulher sozinha! Comento casual e maliciosamente: — "Ummm, seu José, o senhor está a cada dia mais perfumado, hein? Vai à alguma festa?" E ele enrubesce e gagueja... Ai, ai, ai — penso: — "Não é que eu tinha razão?" E arrasada de tanto sono, peço licença e vou tratar de dormir mais um pouco, de porta trancada. — "Qualquer coisa batam na porta que vou escrever mais um texto" — minto. Eles concordam e vou dormir mais umas horinhas, se nenhum imprevisto acontecer, se nenhum cano furar, se o azulejo não quebrar, se o epóxi não endurecer, enfim... se tudo correr de vento em popa... Entro em meu quarto escurinho, deito-me, fecho os olhos e sonho.... Sonho com o dia em que esta maldita reforma terminar e eu possa enfim ter o repouso que mereço e gosto sozinha! Absolutamente feliz e SOZINHA!!!

Publicado na CRÔNICA DO DIA, em 14.outubro.1999

Eliane Stoducto



Das idades, da paz e da tranqüilidade...

Outro dia uma pessoa de uma lista que freqüento comentou sobre os preparativos que tinha feito quando estava às vésperas de completar 30 anos e perguntou aos outros o que sentiram quando entraram nesta idade...

Não me preparei e nem senti nada especial quando fiz 30 anos. Para mim, completar 30 anos foi exatamente como fazer 25, 29 ou 34... A mesma coisa quando completei 40. Não sei por que, mas estas datas terrenas, essa obsessão cronológica começou a me dar um certo tédio desde quando, ansiosa por ter 18 anos, descobri que não havia de fato grandes diferenças... Apenas o número mudava.

Quase todos os meus amigos, desde os meus 20 anos, sempre foram muito mais velhos que eu... E eram pessoas brilhantes, intelectuais, jornalistas, músicos, enfim, pessoas que curiosamente eram muito mais "jovens", atuantes e participativas do que as de minha idade... Alguns deles, artistas, têm até hoje a platéia abarrotada por público jovem. "A idade que se tem é a que sentimos" e não a determinada por um calendário que um papa resolveu instituir, sabe-se lá para atender a interesses de quem...

E se o padrão de contagem fosse outro, hein? E se houvesse uma Babel e existissem diversos padrões de contagem cronológica, um para cada grupo social, raça, sexo, etc., que aliás, até muito pouco tempo atrás vigorava em relação às mulheres.

Na minha adolescência, década de 60, ouvia um cantor, o Miltinho, cantar a música "Mulher de trinta" assim:

"Você mulher, que já viveu
que já sofreu, não minta
Um triste adeus, nos olhos teus
a gente vê mulher de trinta..."
(??????????????)

Adeuss??? Aqui, ó! Felizmente esta canção entrou por um ouvido e saiu por outro... Se não estaria marcada a ferro e fogo "ad eternum"... :)))))

Hoje estou com 49 e, se sobreviver, daqui a pouco terei 50, quiçá 60? :) É evidente que algumas mudanças ocorreram em mim, não por causa da idade, mas pelo caminho percorrido e pela capacidade de aprendizado. Conheço pessoas que chegam aos 80 e continuam tão vazias, conformistas e mesquinhas quanto eram mais jovens.

Mas, minhas inquietações, perguntas, indignação e sede pela vida são tão ou maiores do que as da juventude! Quem tiver esta chama acesa não envelhecerá nunca. Não voltaria, nem por um segundo, às minhas idades anteriores! Me gosto mais e me sinto muito mais plena, consciente e generosa hoje do que já fui algum dia.

Descobri que a harmonia e uma certa felicidade estão do lado de dentro e não do lado de fora e que apenas nós possuímos a chave secreta, embora existam pessoas que se debatam pensando que outra pessoa possui sua chave e outras ainda que nem desconfiam que essa chave existe.

Descobri que meu maestro predileto, o Tom Jobim, estava equivocado ou carente quando escreveu "É impossível ser feliz sozinho..." É perfeitamente possível ser feliz sozinho, dependendo da capacidade de introspecção e de gostar de si mesmo de cada um.

Mas como no Universo nada está parado, ficar estática, numa posição de serenidade e harmonia é muito chato! Tanto que estou até pensando em arranjar uma paixão, daquelas terríveis e infernizantes, que tiram a serenidade, a paz e o prumo, pois não estou suportando tanta paz e equilíbrio! :)))

Viver é ter contrastes, sombra e sol, percorrer altos e baixos! Sempre! Que a paz esteja comigo além túmulo. Mas não agora!

Eliane Stoducto