quarta-feira, 25 de abril de 2007

'E choro, e uivo, e me debato.'

Poemas



Lava

Meu sangue borbulha
e ferve, é lava
que lava, escalda
e queima, me arde...

Meu sangue é lava,
excita, me inflama,
castiga e aflige,
me deixa em viva carne...


Lua Cheia

Nas madrugadas insones de verão,
montada em negro corcel, viajo rumo ao passado.
Deliro, ardo em febre. Me apunhalo.
Me afogo em frios suores e,
depois, choro pela vida desperdiçada
como o vinho entornado
nas mesas de tabernas ordinárias
e chopes não terminados, levados
por apressados garçons mercenários.
Choro por minha polidez medíocre e bem comportada,
pelo tolo acato às convenções institucionalizadas,
pelo horrível aprendizado de engolir sapos.
E choro e uivo e me debato.
Afinal, é lua cheia...

Madura Idade

Aquele olhar de antigamente,
surpreso e transparente,
transformou-se em oblíquo e cansado.
O riso que brotava tão freqüente, rareou.
Ficou em seu lugar apenas um esgar entediado...
As mãos que eram quase de criança
viraram as de mulher atarefada...
Os cabelos castanhos se cobriram
com alguns fios prateados...
A velha timidez se travestiu
e agora já mal dava pra notar...

Apenas, algumas vezes, era quebrada
aquela paz tão duramente conquistada:
só quando a garotinha prisioneira
insistia em protestar
e a senhora, rápida e rasteira,
tentava lhe estrangular!



Meio que...

Ando meio que drogada,
meio que apaixonada,
exalo nicotina e paixão.
Ando meio que bonita,
meio que aflita,
entre a taquicardia e o tesão.
Ando meio que contente,
meio que doente.
Pra ser feliz,
estou por um triz...
Ando meio que surtada,
meio que amada...
Ando meio que...
meio que...
sei não!

Oceano interior

Algas, plâncton, maresia
espelho de águas serenas
angras, pélagos, enseadas
sob uma pele morena

águas cálidas, tranqüilas
encobrindo turbilhões
profundezas insondáveis
reinos de treva abissal

grutas secretas, águas frias
correntezas e marés
lavando o lodo das mágoas
transformando o fel em sal...

OCO

teu pouco
amor
louco,
primeiro
foi como
um soco,
depois,
deixou-me
o peito
oco

Peso do nada

Sou formada por ausências
solitude, abstinências
que muitas vezes esmagam
os gritos do meu silêncio

Sou feita de mil querenças
anseios e transparências
que muitas vezes emergem
com a voragem de um tufão

Sou fruta verde-madura
um travo de fel-doçura
aguardente que se traga

igo cerzindo essa teia
segurando em minhas veias
todo o peso deste nada

Quase

Quase me perco
nas dúbias sendas
do teu enredo

quase me rendo
nas negras teias
desse tecido

quase me afundo
nas águas turvas
quase me embrenho
na selva escura

mas saio inteira
e com mais viço
escapo ilesa
desse feitiço...

Que noite...

Que noite essa minha
sem sonho, sem sono
sem lua, sem vinho
que noite essa minha...
ganindo, gemendo
latindo sozinh
ao ponto da agulha
cerzindo sem linha
que noite essa minha!





A dor vinis crescendo...
Eliane Stoducto


Não sei o que me atacou... Provavelmente ter ouvido a mp3 do Márcio Proença, meu velho parceiro, achada na web. Feliz o tempo? Ou então nostalgia da mais simples e honesta boemia. Quem sabe o excesso de reclusão que, geralmente, transo numa boa e até me dá prazer, se transformou? Ou então a memória da pele - e do fígado - de um uísque nostálgico?
Não sei... Sabe-se lá o quê... Mas a saudade de antigas boemias bateu... Saudade de uma época em que eu era dona do meu nariz em que podia sair e voltar com o dia alto... Ou não voltar. "uísque, dietil, dienpax..."

Pessoas boêmias e com inequívoca vocação para a solidão, com sentimentos ambíguos, duais, pertencentes ao sexo feminino, não deveriam ter filhos. Ou deveriam?
Que me desculpe o poetinha

"Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!"
Mas se não os temos
Como sabê-los? Como sabê-los?"

mas isto é muito bom para poetas diplomatas do sexo masculino com grana no bolso e mulheres. Mulheres em profusão. Dedicadas, apaixonadas e maternais para cuidar deles, dos filhos deles, trocar as fraldas e comprar e agendar bananas e legumes para a papinha, enquanto o poeta enxuga umazinha, toma uma caipirinha e come uma feijoada com gostosa farofinha. E sofre, e cogita, e filosofa. E pode dar-se ao luxo da ressaca. E internar-se quando a coisa toda empaca.

Não há poesia numa fralda de cocô palpável e olfatável esperando no tanque. Não há poesia no ensaboar em si, apenas nas palavras e no olho do poeta.
"foi, quem sabe, esse disco, esse risco de sombra em teus cílios, foi ou não, meu poema no chão, ou talvez, nossos filhos..."

Mas... tirante os filhos que aborrecem, adolescem, nos enlouquecem e controlam, tirando-nos a paz e o prumo e que, provavelmente, depois se vão para o quase nunca mais (quando, meu deus, quando???? que seja já!) sinto uma angústia prosaica.

Uma angústia de não poder ouvir mais meus vinis... tenho muitos vinis mas o raio do meu som só toca CDs. Toca três CDs e nenhum vinil! Vinis de amigos, vinis com dedicatórias, vinis com minhas letras, música de amigos...

Vinis que me transportam no tempo, nas pessoas, nos afetos, nas minhas milhões de facetas interiores, e que jazem nas prateleiras do teto... Daqueles, que nunca vão ter regravações em CDs porque são raros, desconhecidos, de amigos, vinis de colecionador.
Que lástima... Estou velha, arcaica, senil como o vinil dos nossos embalos de sábado e sexta-feira à noite...
O vinil que contava nossas histórias pessoais e passionais, com a faixa arranhada e gasta - quase furada - de tanto ouvir quando se chegava em casa de porre depois de ter perdido o suposto grande amor... Aquele, do qual conhecíamos os arranhões e cicatrizes, se foram... E hoje eu choro a perda dos velhos vinis com suas heranças, histórias e legados febris.


Publicado em Collectanea

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