quinta-feira, 26 de abril de 2007

'Um bom dia'


Elliot Erwitt.

Poemas

Mar em trânsito
Para Maria Tereza

Para o mar Maria ia
Para o mar ia
Para o mar ia
Ao pisar a fina areia
Em hora de maré cheia
O mar ia até Maria
O mar ia até Maria
O mar ia
O mar ia

Maria
Mar em trânsito...

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Mira
para minha mãe


Mira confusa
insana
absurda

Baila sozinha
tão triste
abstrusa

O tempo abstrato
tragando
sua mira

25/09/2004

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Sabores

Você, ao me enganar,
me deixou
tão livre e solta,
que hoje não tem volta,
descobri
novos sabores...

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Sob a lua...

Sob a lua
eu reluzo
e flutuo...
Sob a lua
sou estrela
te ilumino
e aqueço
enlouqueço
e te amo...

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Taquicardia

Delírios de febre,
suor e arrepios,
me toma de assalto
uma taquicardia:
o pulso acelera
assim de repente,
me sinto doente...
Os olhos vidrados,
a boca silente.
Sutil calafrio,
qual sombra da morte,
percorre a espinha.
Na louca agonia
espasmos, tremores...
é a vida que parte?
São males? São dores?
Que nada...
São só ais de amores...

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Xadrez inútil

Jogar xadrez
beber na chávena
o chá da Índia
feito burguês

Fumar charutos
Jogar xadrez
comer rainhas
com avidez

E antever
e maquinar
a estratégia

Abstrair
e descartar
qualquer
tragédia

Ser rei total
e absoluto
mas só ganhar
na superfície
do tabuleiro

Ser jogador
e leviano
ser incapaz
de mergulhar.

Amar ligeiro
é não amar...



Ney Trait Fraser.

Um bom dia

Um bom dia pra morrer
é quando tudo está parado
não se ama, não se odeia
e tudo, aparentemente,
está tão calmo

Um bom dia pra morrer
é quando a saudade do que
não houve insiste, e então,
a gente fica triste

Um bom dia pra morrer
é quando o futuro
não mais nos instiga
com promessas obscenas
das coisas que nunca,
nunca, se conquista

É quando a vida, aos olhos,
se desbota, e o prazer
com as coisas que se tinha antes
já não brota

Um bom dia para morrer é hoje...

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Suicídio ou porre

A manhã tinha sido particularmente difícil e agora eu estava ali sentada, num banco do Largo do Machado, pensando no que iria fazer de minha vida. Só havia uma perspectiva possível sobre o que fazer no momento - ir para casa ver televisão... Meus pêlos se eriçaram e um calafrio perpassou pela coluna diante desta possibilidade... Meu cérebro começou a contorcer-se à procura de alternativas mais agradáveis. De todas as idéias executáveis no momento só restaram duas que possuíam algum atrativo: suicídio imediato ou andar dois quarteirões, até o Café e Bar Lamas e tomar um porre descomunal.
O suicídio apresentava certas vantagens pois eu sabia que no dia seguinte não iria ter que me defrontar com o assustador incômodo de uma horrenda ressaca... O Tonopan e o Ormigrein tinham acabado... Valium, depois que mandara meu analista - que tinha um tique nervoso no olho esquerdo - à merda, nem pensar... Suicídio ou porre? Porre ou suicídio? O que fazer?
Subitamente sons de buzinas enlouquecidas me arrancaram das profundezas do debate interno. Olhei a minha volta. Eram 18h30 e o congestionamento da Rua das Laranjeiras já atingira o Largo. Dois garotos andrajosos e despossuídos, que as pessoas politicamente incorretas denominavam de pivetes, arrancaram a bolsa de uma senhora e saíram correndo debaixo de gritos de "- Pega ladrão!".
Um outro despossuído e sem-teto, isto é, um mendigo andrajoso, deitado num canteiro grunhiu algo e escarrou próximo a mim. Senti algumas gotículas daquela excreção insalubre respingarem no meu pé, mas continuei imóvel, olhando fixamente para o lado oposto, como se estivesse muito preocupada com outra coisa que não fossem aqueles nojentos respingos de escarro no meu pé e, dramaticamente, decidi: SUICÍDIO! NOW!
Levantei-me e lancei um olhar em torno para ver se entre centenas de camelôs encontrava algum que vendesse algo que me ajudasse a levar a cabo minha inexorável decisão. Precisava de lâminas de barbear!
Não as tinha em casa pois há dois anos havia resolvido aderir à nova tendência da moda natural e deixara crescer livremente todos os pêlos do corpo. As axilas inclusive, o que me valera algumas gozações de amigos mais caretas, que passaram a me chamar de Baby, mas isso já é outra história. Minha urgência, no momento, era conseguir adquirir as tão preciosas lâminas para poder concretizar minha inabalável decisão.
Pesquisando com o olhar entre a centena de ambulantes, finalmente avistei um, que vendia as tais lâminas. Aproximei-me e pedi um pacotinho e, ao pegá-lo, - decepção! - descobri tratar-se de lâminas duplas, G2.
-Não tem gilete azul? - perguntei ao ambulante, que me olhou como se eu fosse um ET.
-Essas lâminas são ótimas, moça! Uma faz tchan, outra faz tchun!
-Você não tem lâminas inglesas?
Ele me olhou estranhamente e eu me apressei a pagar e sair rapidamente dali, guardando o inútil pacotinho na bolsa. Olhei em torno desesperançada. O tráfego tinha piorado e o som das buzinas misturava-se ao dos arrancos dos ônibus do ponto final. O ar estava irrespirável com a fumaça dos veículos... Nisto, senti atrás de mim, um leve toque no ombro.
-Pronto! - pensei, desolada - o mendigo ...
Fui virando lentamente o rosto por cima do ombro, imaginando o que me aguardaria agora....
-Zuca! - quase gritei, entre surpresa, aliviada e encantada.
Zuca tinha sido meu quase namorado na época da faculdade e, desde que voltara do exílio, não voltara a vê-lo.
- Que prazeeeeeeeeeeer! exclamamos mutuamente.
Abraços efusivos e calorosos, beijos de "bico" e decisão de comprarmos umas "cervas" no boteco mais próximo e irmos até lá em casa para botar o papo, com 8 anos de atraso, em dia.
As lâminas foram utilíssimas! Usadas para uma depilação completa, no cheiroso banho de espuma que tomei, enquanto Zuca botava as cervejas no congelador, escolhia uns discos, olhava o Parque Guinle e o topo do Palácio das Laranjeiras e se familiarizava com o terraço da minha pequena cobertura...



Publicado na CRÔNICA DO DIA , em 30.outubro.1998


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