segunda-feira, 23 de abril de 2007

'Excesso de bagagem'

Poemas

Excesso de bagagem

Nosso caso já morreu
antes de poder ter sido
e essa sensação, o déjà vu,
essas palavras...
Alguém mil vezes já falou,
algum poeta, algum amigo...
Soterrar toda a paixão,
emparedar desejos
em eternos porões sombrios...

Não importa,
apenas mais uma rotina,
apenas mais uma tristeza
que vou levar comigo.
É só mais uma...
Tenho malas tão cheias,
carregadas,
que não sei como vou
pagar o preço
pela bagagem extra
no fim dessa jornada...

Fogos... fátuos?
(véspera de reveillon, 2003)

Não preciso ir ver os fogos.
A mim já bastam os meus:
fátuos, tolos, in
sensatos, meio
vivos, semi-
mortos, que
insistem
em quei
mar

Futuro do pretérito

Eu poderia ficar horas te escutando
tuas piadas, teus projetos, teus enganos.
Eu poderia te olhar horas a fio,
enquanto tu fosses desfiando
as histórias da avó e dos teus filhos...
E ficaria horas contemplando
o teu jeito meio bobo e te adorando...
Ah, eu ficaria, sei que ficaria...
Com a atenção dispersando eu te olharia
sorrindo com ternura e simpatia,
a mente vagueando em outros planos,
ansiosa, procurando a fantasia
de te ter dentro de mim...
Ah, eu faria tudo isso, ah, se eu faria!
Depois, quando calasses, eu te levaria
para os brancos lençóis,
então serias o meu dono...
Mas, hoje não, meu querido, estou com sono...

Insana

O seu olhar
detonou
aquilo que estava
a sete chaves
bem guardado
o beijo inevitável,
depois,
na cama,
a marca indelével,
presença insana,
ficou para atestar
o que se sente,
o que se irmana
e nas tramas
do tesão
e da ilusão
ainda é
chama.

Labirintos

Coloridos
e sombrios
os labirintos
da alma,
onde me perco,
me agito,
me desavenho,
reflito,
me acho
e encontro
a calma...



Pierrô por circunstâncias

Eliane Stoducto

Quando ele nasceu era um lindo, gorducho e sorridente arlequinzinho. Seu pai era Crespin, o arlequim e, sua mãe Faustina, a colombina.
Na maternidade, assim que Faustina tomou-o nos braços pela primeira vez, foi logo falando:
- Que lindo pierrozinho!
No que seu pai, Crespin, retrucou, em voz sonora:
- Que pierrô que nada, mulher! Parece cega! Não está vendo que ele é um lindo arlequinzinho?
Convém notarmos que a relação entre Crespin e Faustina sempre fora muito conturbada. Desde o namoro ficara claro que eram almas muito diferentes. Questão esta, muito habilmente contornada por Faustina, que estava firmemente decidida a não deixar que “pequenos” detalhes influíssem no seu projeto de casamento com Crespin.
Diante de tal afirmativa, Faustina, como sempre bastante irritada com Crespin, reagiu:
- Cego é você, Crespin! Cego e desequilibrado! Você não pode ser árbitro de nada!
Além de passional, há sempre vapores alcoólicos toldando sua mente e visão! Isto impede que você veja as coisas com clareza! Eu, que sou uma mulher ponderada, equilibrada, imparcial e justa, posso muito melhor que você, julgar e avaliar precisamente a realidade! É claro e cristalino como a água que nosso filho é um lindo e gracioso pierrozinho! Vá curar sua carraspana que é o melhor que você faz! Você, que vive entre a bebida, amigos escusos e mulheres duvidosas, deveria recolher-se e não perturbar desde já nosso filho com seu passionalismo e confusão!
Crespin ficou pau da vida. Mas, como Faustina estava de resguardo e Crespin não tinha a menor intenção de prejudicar o filho recém-nascido, saiu e foi para o bar mais próximo da maternidade e, encheu a cara durante sete dias e sete noites consecutivos, findos os quais foi para casa, trancando-se no quarto de hóspedes por mais dois dias para curar a ressaca.
O menino foi registrado, um mês depois, com o nome de Tristão, por absoluta insistência da mãe e, sua festa de batismo, apesar dos esforços de Faustina, foi um completo desastre.
A principiar pelo fato de Crespin ter chegado à igreja atrasado e acompanhado com uma turma de amigos blasfemos, alegres e ébrios, causando-lhe o maior constrangimento.
Depois, na recepção que Faustina organizara em sua casa para comemorar o evento, Crespin, como sempre, se excedera na bebida e cortejara todas as mulheres, homens, velhos, velhas, adolescentes e crianças, que adoravam suas brincadeiras, deixando Faustina furiosa.
Depois que Faustina confiscou publicamente a bebida de Crespin ele começou a perder toda a alegria, sentindo-se desrespeitado e humilhado e, lá para o final da festa, já inteiramente embriagado pelo desacato e desgosto, vomitou no prato de empadinhas, após o que, refestelou-se no meio da sala começando a dormir profundo sono, meio entre o desmaio e o coma alcoólico.
Faustina agradeceu aos céus da maioria dos convidados já ter se retirado e, com a ajuda de parentes, conseguiu arrastá-lo até o quarto.
Depois desse episódio o casamento agonizou por mais alguns meses até que o casal decidiu-se pelo inevitável divórcio.
Crespin foi morar em Brasília e a guarda do pequenino Tristão foi confiada à sua mãe, que o criou correta e desveladamente como um... pierrozinho.
Tristão era uma criança bela, alegre, feliz e descontraída demais para o desgosto de Faustina.
Toda vez que levava o menino para tomar sol na pracinha ouvia sempre comentários:
- Que belo arlequinzinho!
Ao que ela, retrucava irritada:
- Arlequim não! Pierrô!
De tanto ouvir esse comentário, para deixar bem claro quem era Tristão, passou a pintar em sua face esquerda uma grande e bem desenhada lágrima. E lá ia ela orgulhosa empurrando seu pierrozinho...
Tristão foi crescendo e se dando conta de que toda a sua alegria, espontaneidade e displicência amarguravam profundamente sua mãe.
Para sentir-se amado foi começando a dissimular sua vivacidade por trás de uma máscara triste e meio apática. Por quantas vezes tivera de conter ímpetos de pura alegria de viver era impossível de se contar.
Faustina, sentindo-se traída pela vida e pelo destino, foi ficando a cada dia mais amarga, mais desconfiada com o mundo.
E o tempo foi passando... Aos 19 anos, Tristão era um belo rapaz. Alto, magro, de olhos sonhadores e vagamente inquietos... Deixava, passivamente, sua mãe continuar a pintar-lhe a eterna lágrima no rosto antes de ir à Faculdade. Eram muito apegados. Afinal, como se desavir com aquela mulher, que se privara de tudo, como ela mesma dizia, e dedicara toda uma vida de lágrimas e sofrimentos pelo seu bem e felicidade? Ou melhor, infelicidade?
Sim, porque Faustina tinha um verdadeiro culto pela tristeza e ações dramáticas. E Tristão, por hábito, necessidade e cotidiano, compartilhava da sua maneira de ver a vida. Ou, pelo menos, assim era levado a pensar.
Desde muito cedo aprendera a dissimular qualquer faísca de felicidade para agradar Faustina, que não era muito chegada a arroubos de alegria. “Muito riso é sinal de pouco siso” – dizia ela - que sempre fora muito apegada a ditos populares e estava sempre tirando um da cachola para aplicar ao seu dia a dia...
E Tristão, que sentia inseguro e tinha um imenso desejo de ser amado, não ousava contrariar a soberana mãe.
Nas madrugadas insones, enquanto viajava em sua louca fantasia, se imaginava muito, muito feliz, perpetrando a enorme indignidade de satisfazer seus próprios desejos. Se esvaia em gozos, beijava bocas, tocava corpos, bebia vinhos, dançava e gargalhava. Sentia o doce aroma que provinha de seu corpo limpo e pensava no quanto queria compartilhá-lo com alguém. Dormia imerso em devaneios e a manhã chegava, arrancando-o de transes tão luxuriosos e exóticos.
Pela manhã, logo após trancar-se no banheiro olhava-se ao espelho e compunha sua máscara trágica para sair para o café e dar o bom dia matinal à sua gentil mãe. Automaticamente seu olhar se esvaziava das emoções e dos anseios da madrugada para beijar aquele rosto tão sofrido e familiar de Faustina.
Convém que se diga que não havia revolta nos sentimentos de Tristão. As coisas, para ele, estavam postas de uma forma determinada (por Faustina) e isso era inquestionável, estavam entranhadas e faziam parte de sua vida. Só havia um sentimento meio vago, muito interno, de desassossego, de inquietação, de nostalgia de algo não vivido, que ele não sabia exatamente o que era.
Até que certo dia – ironias da sorte – chegou da faculdade mais cedo do que o previsto pois fora decretada uma greve geral. Haveria uma passeata de alunos e mestres e, embora morto de vontade de participar, se esquivara pensando nas críticas, cenho franzido e sofrimento de sua nobre e casta progenitora, que odiava qualquer manifestação em repúdio a qualquer norma institucionalizada.
Ao abrir a porta de casa ouviu ruídos, ganidos e gemidos vindos do quarto de Faustina e seu coração quase parou!
- Mamãe está tendo um enfarte!? Um derrame!? Mamãe enlouqueceu de sofrimento?! Quem sabe tenha ouvido a notícia da passeata e ache que eu esteja participando?! – pensou angustiado e aflito.
Ao abrir afoita e alucinadamente a porta do quarto deparou-se com uma cena surreal, inimaginável.
Viu sua casta e santa mãe, Faustina, inteiramente nua, com um olhar esgazeado, sorriso lascivo, entre urros, gemidos, gritos, em estertores de gozo, sendo apalpada, lambida e chupada por um desconhecido, com um membro enrijecido, de proporções dantescas.
Soltou um urro gutural e agoniado, de animal ferido e saiu correndo porta a fora e se perdeu no mundo. Sentia-se traído, iludido, ludibriado e desperdiçado!
Passou exatamente sete anos comendo, bebendo, trepando, amando, sofrendo, cantando de tristezas e alegrias, chorando e rindo, gargalhando e usando plenamente todos os seus sentidos. Numa farra e orgia loucas, celebrando a descoberta de sua verdadeira identidade.
Agora então podia ser o arlequim que sempre fora desde o berço e até sentia-se generoso para perdoar toda a hipocrisia de Faustina...


Publicado na seção "O Domínio da Matéria", em Condomínio Brasil, fev. 2006

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